Muito se tem falado sobre o processo de adultização ou
adultificação das nossas crianças e adolescentes em contraste com a
infantilização dos adultos que, por tutela e responsabilidade (responsabilidade?),
deveriam ser seus esteios e consciência. Pelo menos, deveriam ser. A PGU –
Psicologia Gestáltica da Unidade compreende tal processo como uma
terceirização, por parte dos pais, da formação do caráter e da personalidade da
criança, onde a Função Paterna que regra a formação e delimitação das Fronteiras
de Ego não cumpre seu papel devido a não encontrar, nos pais, ainda imaturos
afetivamente, o regramento e a constância necessária para tal exercício. Dito de outra forma, compreende-se que o
processo de adultização, embora tenha múltiplos vieses de interpretação, se
inicia quando abrimos mão da educação familiar terceirizando nossos filhos
precocemente para creches e escolas sem que estas estejam devidamente
preparadas para absorver a demanda do processo de desenvolvimento psicológico
da criança. Por outro lado, no campo social e familiar, a exposição das
crianças e adolescentes a conteúdos impróprios para sua idade através do uso
inadequado das mídias eletrônicas e redes sociais utilizadas e concedidas pelos
pais como instrumentos de mero entretenimento.
Na realidade atual do contexto familiar observa-se
constantemente, pais cada vez mais inseguros e alienados, tentando educar
crianças que, cada vez mais precocemente são subvertidas ao uso intenso de
aparelhos celulares, tablets e até mesmo computadores, conectados por horas em
vídeos e programas, ditos infantis, mas que trazem, além de conteúdos
inadequados a idade, uma gama enorme de publicidade e propagandas que subvertem
ao consumo através da excitação constante de luzes, sons e cores.
Para compreendermos melhor o processo de adultização e, por
consequência o desaparecimento da infância, e a infantilizaão do adulto, vamos
mergulhar nas pesquisas do professor titular do Departamento de Comunicação da
Universidade de Nova York, Neil Postman, que retrata em seus mais de vinte
livros, não só o tema determinado como o desaparecimento da infância, como
também, de forma clara e concisa, documenta historicamente o surgimento e a
consagração da infância como etapa importante do desenvolvimento humano e os
percalços que a infância e adolescência sofrem com a exposição à mídia e
alienação ao consumo, resultando em adultos cada vez mais alienados e
infantilizados.
Postman mostra claramente que a infância como fase de
desenvolvimento humano, da forma que a vivenciamos hoje, é uma descoberta
recente, que surgiu na Renascença, após a revolução promovida pela palavra
impressa que socializou a necessidade de alfabetização e hierarquizou o
conhecimento por faixas etárias.
Essa demarcação do território do conhecimento dificultou o
acesso a diversas etapas de informação à criança, de forma a ‘excluí-la e
protegê-la’ de conhecimentos que só se destinava ao homem adulto, dando origem
à infância.
A criança como é vista hoje não existia na idade média.
Naquela época, eram vistas como homens em miniatura e eram expostos ao convívio
de todo tipo de comportamento adulto, desde palavrões, assédios sexuais,
enforcamentos e trabalhos forçados. Na outra extremidade, no entanto, haviam os
homens-infantilizados, incapazes de se desenvolverem plenamente pela falta de
acesso ao conhecimento escrito.
Entretanto não foi sempre assim. Na Grécia antiga e depois
no Império romano, as crianças gozavam de tratamentos diferenciados e havia uma
certa preocupação com sua formação moral, embora o conhecimento da linguagem
escrita não fosse acessível a todos.
Com a invasão dos bárbaros do norte, o colapso do Império
Romano, o sepultamento da cultura clássica e a imersão da Europa na chamada
Idade das Trevas e depois na Idade Média, o conceito de criança deixou de
existir por mais de trezentos anos.
No período a qual permaneceu extinta, a infância foi vítima
de quatro aspectos importantes: o primeiro é o desaparecimento da
capacidade de ler e escrever da população, devido ao uso restrito do alfabeto
grego. O segundo ponto é o desaparecimento da educação formal, restrita
aos escribas. O terceiro é o desaparecimento do sentido de vergonha, que
com isso, passou a expor a criança a todo tipo de comportamento adulto, sem
restrição. E o quarto, consequência dos três primeiros, é o próprio
desaparecimento da infância, na idade média.
Com a invenção da tipografia de caracteres móveis, por
Gutenberg, por volta do ano de 1.450, houve uma conflagração e disseminação de
toda forma de conhecimento escrito, através da publicação de livros e jornais, o
que determinou a necessidade de se criar escolas para dar aos jovens uma nova
perspectiva do saber do desenvolvimento humano.
O surgimento do conceito de criança, segundo Postman,
trouxe consigo, inevitavelmente, o conceito de adulto e suas definições: adulto
é aquele que possui o conhecimento. Criança é aquele que, protegido, ainda não
alcançou o desenvolvimento necessário para apossar-se de todo conhecimento
exposto ao adulto.
O conhecimento descrito nos livros, ordenado de forma a
ocultar dos mais jovens os segredos pertinentes ao mundo dos adultos, foi criando
assim as etapas de desenvolvimento onde os jovens tinham acesso, na grande
maioria das vezes, ao saber destinado à sua faixa etária. Surgiu assim o
conceito atual de criança, jovem e adulto. Ser adulto significa, portanto, ter
acesso a segredos culturais codificados em símbolos não naturais.
No mundo letrado as crianças precisam transformar-se em
adultos, apossando-se paulatinamente dos significados desses símbolos, de forma
a terem ‘o tempo suficiente para deglutirem’ esse significado, cunhando
assim, quando adultos, suas próprias convicções a respeito do conhecimento.
No mundo não letrado não há distinção de conhecimento,
portanto, não há distinção entre criança e adulto, visto que, não há segredos a
serem desvendados: a criança vivifica constantemente o mundo dos adultos, sendo
ignorada por eles, como criança, deixando assim de existir. Um bom exemplo no
qual podemos nos pautar para confirmar esse pensamento é a imersão do nosso
olhar para países africanos como Madagascar, Guiné e outros, onde, ainda hoje,
devido à estrema pobreza, as crianças não frequentam a escola e começam a
trabalhar aos cinco, seis anos, para ganhar centavos e ajudar no orçamento
doméstico. Pequenos adultos que, por serem infortunados, perdem a infância
experienciando o mundo adulto prematuramente.
O conhecimento exposto à criança através da forma escrita,
paulatinamente ordenada, desenvolve sua capacidade de reflexão e de imaginação,
criando um mundo particular, onde conhecer os segredos dos adultos aguça a
curiosidade e cria o conceito de vergonha, sem o qual, não existe infância.
No período de 1850 a 1950 a infância se fortalece e se
define, ocupando seu lugar na família e na sociedade. No entanto, Postman
defende a ideia de que, nesse mesmo período a ambiência simbólica que deu vida
à infância começou a ser desmontada vagarosa e imperceptivelmente, determinando
o início do seu fim.
Mais uma vez, a infância
está desaparecendo. Postman aponta como ponto principal uma outra revolução:
a da comunicação elétrica/eletrônica, iniciada com o telégrafo de Samuel
Morse, onde a informação ganhou a velocidade da luz, culminando na televisão e
em todos os meios eletrônicos de comunicação hoje existentes.
Até então, o conhecimento disseminado nos livros obrigava a
criança a desenvolver sua capacidade de reflexão para compreendê-los, de forma
a utilizar-se de todos seus aparatos de percepção e raciocínio lógico, numa
forma sequencial e ordenada, distribuídos ao longo da vida por faixas etárias.
Isso não acontece quando uma criança fica horas imersa no
mundo virtual que utiliza-se do processo audiovisual, o qual não necessita
desenvolver nenhuma forma de conhecimento para usufruí-lo. Ela entrega tudo
pronto, numa quantidade e velocidade em que é impossível para o ser humano
criar e desenvolver qualquer conceito a respeito do que foi mostrado.
Outro ponto crucial é a não determinação de que tipo de
conhecimento é apropriado para a criança ou para o adulto, eliminando assim,
‘os segredos’ dos adultos, sobre os quais as crianças só tinham acesso no
decorrer do seu crescimento intelectual, não distinguindo o mundo dos adultos
do mundo das crianças. Sem essa distinção, perde-se novamente o conceito de
infância. Segredo esse, ocultado dos pais através da implantação do conceito da
falsa liberdade de expressão[1] que, no decorrer do tempo,
faz ocorrer a inversão de valores sociais.
Postman exemplifica muito bem esse desvendar dos mistérios
do adulto pelos meios eletrônicos de comunicação quando afirma: que a mídia
desempenhou importante papel na campanha para apagar as diferenças entre a
sexualidade infantil e adulta. A televisão, em particular, não só mantém toda a
população num estado de grande excitação sexual como também sublinha uma
espécie de igualitarismo do desempenho sexual; de obscuro e profundo mistério
adulto o sexo é transformado em produto disponível para todos – digamos, como
um antisséptico bucal ou desodorante para axilas.
A obrigatoriedade do consumo infantil, imposto pelos
apelativos comerciais, os jogos de sedução, a exclusão do sentimento de
ingenuidade e, por consequência, a adultificação da criança mostrada como
pequenos adultos em diversas propagandas, a abolição tanto da moda infantil
como também das canções e brincadeiras inerentes à idade, a ausência da mãe – e
principalmente da função paterna, como veremos posteriormente[2] - na educação dos filhos – imposta pelo mercado
de trabalho feminino - a participação cada vez maior de menores em crimes, o
constante crescimento do uso de drogas e de armas de fogo entre os mais jovens,
a antecipação da puberdade feminina e a precoce iniciação sexual, a
institucionalização e a profissionalização dos jogos infantis, a homogeneidade
da linguagem, entre tantos outros motivos, comprovam que a infância está
desaparecendo.
A PGU – Psicologia Gestáltica da Unidade, compreende que não
se faz necessário sermos doutores, psicólogos ou pedagogos para termos tal
percepção. Basta-nos abrir as janelas e termos um olhar um pouco mais aguçado
para nossas crianças para compreendermos o quanto as adultificamos com nossos
atos cotidianos, ou até mesmo, e principalmente, com nossa ausência e
indiferença.
Basta percebermos, atualizando o olhar de Postman sobre as
mídias eletrônicas, o quanto hoje as redes sociais dominam de forma
descontrolada a mente e o cotidiano das crianças e jovens. (recomendo o
filme/documentário: ‘O Dilema das Redes[3]’). Basta-nos
olhar para o consumo desordenado de pornografia, jogos e conteúdos eróticos que
deveriam ser restritos ao público adulto sendo acessado e compartilhado
cotidianamente por milhares de jovens e crianças, sem qualquer escrúpulo ou
controle. Basta-nos um olhar um pouco mais atento para compreendermos o quanto esses
comportamentos vêm, de forma constante e perniciosa, deturpando a construção do
caráter e da personalidade, aceito, por muitos, como se fosse algo ‘natural’
desta geração.
A PGU- Psicologia Gestáltica da Unidade une-se ao
pensamento e pesquisas do Professor Neil Postman e expressa com urgência e
veemência: infância está desaparecendo! E isso não é algo que acontecerá
amanhã, está acontecendo agora, neste exato momento, enquanto você lê este
parágrafo. Não acredita!? Ainda não percebe que a infância na contemporaneidade
só existe em média por dois, três ou no máximo quatro anos? Que uma criança de
dois ou três anos, ao ganhar um celular, acessa conteúdos impróprios à idade
que você só teve acesso na adolescência ou juventude, e que, o adolescente não
consegue, na maioria das vezes, amadurecer saudavelmente devido a não conseguir
fazer escolhas básicas que permitam tal façanha?
Sim! A infância está desaparecendo rapidamente. A
adolescência está estendendo-se de forma não saudável por mais três, cinco, sete
ou dez anos. A maturidade custa chegar e, quando chega, traz em si a não
capacidade para lidar com a finitude da vida. O adulto não quer envelhecer e,
para retardar o envelhecimento e continuar na plena juventude rende-se e
vende-se ao consumo desordenado do corpo perfeito e da juventude eterna,
descaracterizando a própria identidade para poderem ser aceitos como ‘iguais’,
sendo que, é a diferença que nos faz sermos quem somos.
A pergunta que vos faço, e, que me parece ficará ainda sem
resposta é: ‘’que filhos deixaremos como herança para este planeta?’’
Referências
ORLOWSK, Jeff. O Dilema das redes.
(The Social Dilemma): Estados Unidos da América, Netflix, 2020.
POSTMAN, Neil. O
desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2006;
[1] Opinião
do autor.
[2] Idem
[3] ORLOWSKI, Jeff. O
dilema das redes. Documentário Netflix, 2020.
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