Há
inúmeras formas de expressão do amor humano, porém, toda e qualquer expressão
de amor que não surja do ato-de-morrer, não é amor;
é
ego, dependência ou culpa.
Há, no mundo contemporâneo,
uma necessidade extrema de se discutir o paradoxo do amor, visto que, não há
como compreendermos o verdadeiro amor sem entendermos a finitude. Romantizou-se
o amor erradamente de tal forma que, sem a devida delimitação, ele, o amor,
tornou-se banalidade. Dizer eu-te-amo nas relações inter-humanas
tornou-se quase que uma obrigatoriedade para que se possa satisfazer tanto o
vazio existencial daquele que o expressa quanto daquele que o recebe. O amor tornou-se, pouco a pouco, quase que
imperceptivelmente, moeda inconsciente de troca, na inútil tentativa de
preencher o vazio existencial provocado pela ausência significativa do Outro.
Vivemos hoje uma inaceitável ausência do Outro.
A fragmentação e a erotização
do amor, tanto quanto a fragmentação e erotização da pessoa humana, não nos
leva à sua compreensão, ao entendimento da sua essência e das suas
necessidades. Leva-nos à não-consciência da nossa própria essência, à alienação
da nossa própria subjetividade, à dependência ou à imposição do ‘Eu’ sobre o
outro. O amor romantizado e erotizado, expressão de afetos não delimitados, só
pode nos guiar para um único caminho: para o consumo desenfreado do outro e do
mundo, na tentativa desumanizadora de saciar o próprio ego, tal qual expõe Byung-Chul-Han:[1] “não se pode amar o
outro a quem se privou a alteridade, só se poderá consumi-lo”.
Fala-se tanto sobre o amor que
este se tornou um dos assuntos mais citado nas mídias e redes sociais.
Entretanto, fala-se de um amor incompreendido, não vivido ou não experienciado
no outro. Fala-se de amor, mas não se ama. Busca-se o amor, no entanto, o que
encontramos na maioria dos relacionamentos são pessoas inaptas a amar e
sedentas por serem amadas. Pessoas vazias de si mesmas e perdidas em
experiências vil que nada acrescentam ao próprio sentido de se estar vivo ou de
realização como pessoas humanas. Uma realidade que, cada vez mais presente,
vai, ao longo do tempo, alienando o ser em função do ter. Troca-se,
substitui-se o sentido de presença, de imediatez e de responsabilidade pela
falsa ideia de que ter algo ou estar em algum lugar diferente de onde se está
lhes trará a tão sonhada felicidade.
Faz-se importante compreender
que o amor, antes de ser um sentimento, é uma atitude, uma ação consciente,
escolhida, em direção ao outro e ao mundo. Nasce do ato de afetar e ser
afetado. Nasce de um ato de excitação das funções e fronteiras de contato que
nos coloca frente a frente com o objeto mor de nossas excitações. Ninguém ama o
que não conhece. Ninguém ama o que não toca ou é por ele, de alguma forma
tocado. O amor não nasce do prazer, nasce do ato escolhido de morrer. O que
nasce da excitação de prazer é a paixão. Amar é ‘deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja’,
e, qualquer nuance de ‘amor’ diferente dessa, não é amor.
A morte, por ser a progenitora
do amor, torna-se a resposta para a boa vida, e não a vilã de toda experiência
humana. A finitude, a tão temida e desgraçada morte! A contestada, a repudiada
e até mesmo odiada morte. Aquela que, erradamente, é considerada o oposto da
vida, mas não é! Vida e morte não são opostos, são companheiras de viagem.
Caminham juntas, paralelamente, uma ao lado da outra, uma dependente da outra.
O oposto da morte não é vida, é nascimento! Vida é o espaço de tempo que se tem
entre o nascimento e a morte. E viver é preencher de graça, luz e sabedoria
este espaço de tempo. E é exatamente aí que o amor reside! Não o amor das
novelas e ficções; não o amor erradamente representado no sexo, na pornografia
ou na mera ilusão de que precisamos ‘ser amados’. Sim! Precisamos ser
amados. Porém, o amor, o verdadeiro amor, é paradoxal: não é um sentimento, é
uma ação! O sentir é posterior à ação, ao afetar e ser afetado, ao tocar e
ser tocado. Amor é sintoma. Repito: amor é sintoma! Não há amor verdadeiro
sem que este esteja impregnado de morte. Não há vida, não há felicidade, sem
que surjam ou nasçam de um ato de morrer.
Talvez estas palavras sejam
complexas demais, confusas demais, ou até mesmo incompreensíveis neste momento.
Mas são verdadeiras. Incrivelmente verdadeiras. Aprendemos errado e estamos
ensinando erradamente sobre o que é amar, viver e morrer; três essências
incontestáveis da felicidade. Aprendemos a odiar a morte e a exigir amor
para podermos viver. Aprendemos que a felicidade é algo que recebemos dos
outros, sem mesmo termos construído nada em favor dessa tal e tão sonhada
felicidade. Mera ilusão! O mundo do ter não favorece o ser. Não que sejam
incompatíveis. São mesmo difíceis de serem equilibrados: o excesso do ter é
que corrompe o ser. É o ‘como’ nos relacionamos com o ter que vai,
ao longo de tempo, aniquilando o ser.
Elucidar tal paradoxo da
existência humana se faz necessário para que possamos formar pessoas melhores;
primeiramente dentro de si mesmas, e depois, somente depois, nos seus campos
relacionais e no mundo ao redor, experienciando, compartilhando e construindo
relações inter-humanas onde o amor, o verdadeiro amor seja a chave de um
encontro verdadeiro com o outro e com o mundo. Um mundo onde impera a
autoridade, e não o autoritarismo; a individualidade, e não o individualismo; a
compaixão, e não a paixão subvertida em amor; a presença, e não os presentes; a
responsabilidade, e não a culpabilidade; a felicidade plena do ser, e não a
falsa sensação do ter; o amor, em sua mais sublime e sábia forma de expressão: o
amor gerado na escolha pelo ato de morrer!
Amar é uma decisão que exige
morte, mas não qualquer morte. O amor verdadeiro só pode nascer da morte
escolhida, querida, desejada. Nasce do ato de morrer consciente na expectativa
de que um ‘Tu’, um outro, possa vir-a-ser-antes-do-eu, e que,
este Tu, de posse de si mesmo, numa ação voluntária de reciprocidade, através
de sua ação confirmadora, possa fazer nascer então, e só em segunda instância,
o tão desejado ‘Eu’. O Eu é, portanto, sintoma da ação de um Tu confirmador.
Eis, deste modo, o paradoxo da existência humana: o verdadeiro ‘Eu’ só
pode existir através da sua própria morte. Esta é a razão pela qual a
felicidade se faz ausente nas relações inter-humanas: pensa-se,
acertadamente, que para sermos felizes se faz necessário conhecermos a nós
mesmos; no entanto, nos esquecemos que, para conhecermos a nós mesmos só se faz
possível na presença significativa e confirmadora do Outro. O Eu, sem o Tu,
é inexistente. O Eu só pode existir na presença significativa e confirmadora do
Outro, perante o Outro, para o Outro. O Eu nasce como sintoma da sua própria
morte!
A morte escolhida é, na sua
essência, a própria essência da vida, visto que, viver é existir-no-mundo-perante-o-outro-que-nos-significa-e-é-por-nós-significado
através do ato de deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja. Deixar-de-ser só
se faz possível para aquele que, no momento presente do próprio existir tem a
plena consciência da pessoa que se tornou, awareness[2]
da própria ipseidade[3].
A escolha de deixar-de-ser,
a escolha da morte-morrida, da morte-escolhida, só é, portanto,
possível para aquele que de posse da consciência do próprio existir escolhe
livremente deixar-se morrer para viver no outro, aceitando-o, reconhecendo-o e
respeitando-o em sua alteridade, em sua unicidade para que este Outro, agora
existente, também possa aceitar, reconhecer, respeitar e confirmar aquele que o
fez existir.
A morte-escolhida é a
única possibilidade da existência do nós transcendente, embora não se tenha
nenhuma garantia que este venha acontecer. O nós transcendente só ocorre na
reciprocidade do ato-de-existir-também-para-o-outro que consiste no
voltar-se conscientemente para aquele-que-primeiro-confirmou,
confirmando-o em sua escolha de morte, em sua escolha de deixar-de-ser-para-que-este-pudesse-ser,
transcendendo a relação dialética objetal Eu-Isso para alcançar a
dialógica Eu-Tu[4], Eu-Pessoa.
Entretanto, o ato de ‘deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja’
não garante a reciprocidade, somente excita seu surgimento. A semente que
escolhe morrer está propensa a germinar, mas depende ela das condições
propícias da qualidade da terra onde é depositada. O terreno contaminado pode
aniquilar a vida depositada na morte-escolhida da semente. Para que a
aniquilação ocorra basta que a terra ignore o deixar-de-ser-da-semente.
No entanto, a semente que escolhe verdadeiramente a morte-morrida, no
seu ato de deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja nada espera do outro,
regozija-se na própria escolha pois, tem consciência de que, em se tratando da
escolha do outro, nada pode fazer além de aceita-la. O outro é nosso maior
desafio, porém, é também nossa única possibilidade[5].
Ao contrário da morte-escolhida,
a morte-matada é a aniquilação do próprio eu. É a negação do outro-fora-de-si
que jamais o permitirá existir dentro-de-si. É a morte da alteridade, da
unicidade, da diferença que produz consciência, crescimento e felicidade. A morte-matada
é também a insana introjeção, é a inaceitável presença do não-eu no si
mesmo. É a tirania do outro tóxico impondo-se sobre o si mesmo, é a ditadura do
mundo impedindo a liberdade do ser.
A morte-matada ocorre
quando o organismo perde a liberdade de escolha ou, no ato de escolher, perde a
consciência de si mesmo, vivendo, no ato da escolha, a vontade do outro ou do
mundo à revelia da própria vontade. Sem a liberdade de escolha o não-eu
impera sobre o si mesmo aniquilando sua capacidade de ser-e-existir-no-mundo-perante-o-outro.
A morte-matada não gera
o amor, pois faz fenecer a liberdade de escolha levando o organismo à
intoxicação do ser, à alienação ou submissão pelo medo, ou, em casos mais
extremos, à identificação com o impositor, o que o fará sair da posição de
dominado para a posição de dominador, enrijecendo suas fronteiras para com o
outro e o mundo.
Amar é uma escolha que exige
consciência plena de si e do outro, exige presença, autenticidade,
responsabilidade e maturidade afetiva. Amar não é sentir, é saber afetar e ser
afetado. É saber delimitar suas próprias fronteiras e limites, é transcender o
‘Eu’ em função de levar o outro a transcender-se em reciprocidade. É um limite
que, bem estabelecido, permite a si e ao outro a abertura consciente das
próprias fronteiras em função do surgimento de uma fronteira ainda maior, de um
‘Nós’ transcendente que gera o verdadeiro sentido da vida: o pertencer!
O amor, o verdadeiro amor, o
único instrumento capaz de gerar pertencimento exige a morte, exige a escolha
consciente de ‘deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja’. Qualquer outra
forma de amar, não é amor! É ego, dependência ou culpa! Ego, no sentido egoísta
de satisfazer uma necessidade em função de si mesmo, sem a plena consciência da
necessidade momentânea do outro. Dependência
no sentido de nos tornamos algozes de si e do outro. Culpa, quando nos tornamos
escravos: três formas neuróticas do não-ser.
O amor gerado na escolha
consciente de deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja exige awareness
de si, do outro e do mundo. Exige a consciência que somos todos os outros que vieram antes de
nós, e todos aqueles que ainda estão conosco. A consciência que seremos
naqueles que virão depois de nós, e em todos aqueles que estão existindo
enquanto existimos. A consciência que somos elos eternos que, no espiral da
vida, fundem passado e futuro num só momento: o momento presente, o aqui-e-agora,
instante único no qual podemos, ao gerarmos a consciência de si, ser a
consciência do mundo. O único momento que realmente nos pertence, no qual podemos
exercer o real controle sobre o nosso ser-no-mundo e nossa plena
felicidade.
[1]
Agonia do Eros. Vozes, 2017, p.27.
[2] YONTEF, Gary
M. Processo, diálogo e awareness. Ensaios em Gestalt-terapia. 1998.
[3]
RIBEIRO, Jorge P. Vade-mécum de
Gestalt-Terapia. Conceitos básicos. São Paulo: Summus, 2006.
[4]
Buber, Martim: . Eu e Tu. Tradução:
Zuben, Newton A.V. São Paulo: Centauro, 2.001.
[5]
Citação de autor desconhecido

Comentários
Postar um comentário