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NIVALDO MOSSATO
👋 Olá Nivaldo, tudo bem? Estava lendo seu blog e gostaria de conversar com você.

SOBRE O AMOR E A MORTE



Há inúmeras formas de expressão do amor humano, porém, toda e qualquer expressão de amor que não surja do ato-de-morrer, não é amor;

é ego, dependência ou culpa.

 

 

Há, no mundo contemporâneo, uma necessidade extrema de se discutir o paradoxo do amor, visto que, não há como compreendermos o verdadeiro amor sem entendermos a finitude. Romantizou-se o amor erradamente de tal forma que, sem a devida delimitação, ele, o amor, tornou-se banalidade. Dizer eu-te-amo nas relações inter-humanas tornou-se quase que uma obrigatoriedade para que se possa satisfazer tanto o vazio existencial daquele que o expressa quanto daquele que o recebe.  O amor tornou-se, pouco a pouco, quase que imperceptivelmente, moeda inconsciente de troca, na inútil tentativa de preencher o vazio existencial provocado pela ausência significativa do Outro. Vivemos hoje uma inaceitável ausência do Outro.

A fragmentação e a erotização do amor, tanto quanto a fragmentação e erotização da pessoa humana, não nos leva à sua compreensão, ao entendimento da sua essência e das suas necessidades. Leva-nos à não-consciência da nossa própria essência, à alienação da nossa própria subjetividade, à dependência ou à imposição do ‘Eu’ sobre o outro. O amor romantizado e erotizado, expressão de afetos não delimitados, só pode nos guiar para um único caminho: para o consumo desenfreado do outro e do mundo, na tentativa desumanizadora de saciar o próprio ego, tal qual expõe Byung-Chul-Han:[1]não se pode amar o outro a quem se privou a alteridade, só se poderá consumi-lo”.

Fala-se tanto sobre o amor que este se tornou um dos assuntos mais citado nas mídias e redes sociais. Entretanto, fala-se de um amor incompreendido, não vivido ou não experienciado no outro. Fala-se de amor, mas não se ama. Busca-se o amor, no entanto, o que encontramos na maioria dos relacionamentos são pessoas inaptas a amar e sedentas por serem amadas. Pessoas vazias de si mesmas e perdidas em experiências vil que nada acrescentam ao próprio sentido de se estar vivo ou de realização como pessoas humanas. Uma realidade que, cada vez mais presente, vai, ao longo do tempo, alienando o ser em função do ter. Troca-se, substitui-se o sentido de presença, de imediatez e de responsabilidade pela falsa ideia de que ter algo ou estar em algum lugar diferente de onde se está lhes trará a tão sonhada felicidade.

Faz-se importante compreender que o amor, antes de ser um sentimento, é uma atitude, uma ação consciente, escolhida, em direção ao outro e ao mundo. Nasce do ato de afetar e ser afetado. Nasce de um ato de excitação das funções e fronteiras de contato que nos coloca frente a frente com o objeto mor de nossas excitações. Ninguém ama o que não conhece. Ninguém ama o que não toca ou é por ele, de alguma forma tocado. O amor não nasce do prazer, nasce do ato escolhido de morrer. O que nasce da excitação de prazer é a paixão. Amar é ‘deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja’, e, qualquer nuance de ‘amor’ diferente dessa, não é amor.

A morte, por ser a progenitora do amor, torna-se a resposta para a boa vida, e não a vilã de toda experiência humana. A finitude, a tão temida e desgraçada morte! A contestada, a repudiada e até mesmo odiada morte. Aquela que, erradamente, é considerada o oposto da vida, mas não é! Vida e morte não são opostos, são companheiras de viagem. Caminham juntas, paralelamente, uma ao lado da outra, uma dependente da outra. O oposto da morte não é vida, é nascimento! Vida é o espaço de tempo que se tem entre o nascimento e a morte. E viver é preencher de graça, luz e sabedoria este espaço de tempo. E é exatamente aí que o amor reside! Não o amor das novelas e ficções; não o amor erradamente representado no sexo, na pornografia ou na mera ilusão de que precisamos ‘ser amados’. Sim! Precisamos ser amados. Porém, o amor, o verdadeiro amor, é paradoxal: não é um sentimento, é uma ação! O sentir é posterior à ação, ao afetar e ser afetado, ao tocar e ser tocado. Amor é sintoma. Repito: amor é sintoma! Não há amor verdadeiro sem que este esteja impregnado de morte. Não há vida, não há felicidade, sem que surjam ou nasçam de um ato de morrer.

Talvez estas palavras sejam complexas demais, confusas demais, ou até mesmo incompreensíveis neste momento. Mas são verdadeiras. Incrivelmente verdadeiras. Aprendemos errado e estamos ensinando erradamente sobre o que é amar, viver e morrer; três essências incontestáveis da felicidade. Aprendemos a odiar a morte e a exigir amor para podermos viver. Aprendemos que a felicidade é algo que recebemos dos outros, sem mesmo termos construído nada em favor dessa tal e tão sonhada felicidade. Mera ilusão! O mundo do ter não favorece o ser. Não que sejam incompatíveis. São mesmo difíceis de serem equilibrados: o excesso do ter é que corrompe o ser. É o ‘como’ nos relacionamos com o ter que vai, ao longo de tempo, aniquilando o ser.

Elucidar tal paradoxo da existência humana se faz necessário para que possamos formar pessoas melhores; primeiramente dentro de si mesmas, e depois, somente depois, nos seus campos relacionais e no mundo ao redor, experienciando, compartilhando e construindo relações inter-humanas onde o amor, o verdadeiro amor seja a chave de um encontro verdadeiro com o outro e com o mundo. Um mundo onde impera a autoridade, e não o autoritarismo; a individualidade, e não o individualismo; a compaixão, e não a paixão subvertida em amor; a presença, e não os presentes; a responsabilidade, e não a culpabilidade; a felicidade plena do ser, e não a falsa sensação do ter; o amor, em sua mais sublime e sábia forma de expressão: o amor gerado na escolha pelo ato de morrer!

Amar é uma decisão que exige morte, mas não qualquer morte. O amor verdadeiro só pode nascer da morte escolhida, querida, desejada. Nasce do ato de morrer consciente na expectativa de que um ‘Tu’, um outro, possa vir-a-ser-antes-do-eu, e que, este Tu, de posse de si mesmo, numa ação voluntária de reciprocidade, através de sua ação confirmadora, possa fazer nascer então, e só em segunda instância, o tão desejado ‘Eu’. O Eu é, portanto, sintoma da ação de um Tu confirmador. Eis, deste modo, o paradoxo da existência humana: o verdadeiro ‘Eu’ só pode existir através da sua própria morte. Esta é a razão pela qual a felicidade se faz ausente nas relações inter-humanas: pensa-se, acertadamente, que para sermos felizes se faz necessário conhecermos a nós mesmos; no entanto, nos esquecemos que, para conhecermos a nós mesmos só se faz possível na presença significativa e confirmadora do Outro. O Eu, sem o Tu, é inexistente. O Eu só pode existir na presença significativa e confirmadora do Outro, perante o Outro, para o Outro. O Eu nasce como sintoma da sua própria morte!

A morte escolhida é, na sua essência, a própria essência da vida, visto que, viver é existir-no-mundo-perante-o-outro-que-nos-significa-e-é-por-nós-significado através do ato de deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja. Deixar-de-ser só se faz possível para aquele que, no momento presente do próprio existir tem a plena consciência da pessoa que se tornou, awareness[2] da própria ipseidade[3].

A escolha de deixar-de-ser, a escolha da morte-morrida, da morte-escolhida, só é, portanto, possível para aquele que de posse da consciência do próprio existir escolhe livremente deixar-se morrer para viver no outro, aceitando-o, reconhecendo-o e respeitando-o em sua alteridade, em sua unicidade para que este Outro, agora existente, também possa aceitar, reconhecer, respeitar e confirmar aquele que o fez existir.

A morte-escolhida é a única possibilidade da existência do nós transcendente, embora não se tenha nenhuma garantia que este venha acontecer. O nós transcendente só ocorre na reciprocidade do ato-de-existir-também-para-o-outro que consiste no voltar-se conscientemente para aquele-que-primeiro-confirmou, confirmando-o em sua escolha de morte, em sua escolha de deixar-de-ser-para-que-este-pudesse-ser, transcendendo a relação dialética objetal Eu-Isso para alcançar a dialógica Eu-Tu[4], Eu-Pessoa.

Entretanto, o ato de ‘deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja’ não garante a reciprocidade, somente excita seu surgimento. A semente que escolhe morrer está propensa a germinar, mas depende ela das condições propícias da qualidade da terra onde é depositada. O terreno contaminado pode aniquilar a vida depositada na morte-escolhida da semente. Para que a aniquilação ocorra basta que a terra ignore o deixar-de-ser-da-semente. No entanto, a semente que escolhe verdadeiramente a morte-morrida, no seu ato de deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja nada espera do outro, regozija-se na própria escolha pois, tem consciência de que, em se tratando da escolha do outro, nada pode fazer além de aceita-la. O outro é nosso maior desafio, porém, é também nossa única possibilidade[5].

Ao contrário da morte-escolhida, a morte-matada é a aniquilação do próprio eu. É a negação do outro-fora-de-si que jamais o permitirá existir dentro-de-si. É a morte da alteridade, da unicidade, da diferença que produz consciência, crescimento e felicidade. A morte-matada é também a insana introjeção, é a inaceitável presença do não-eu no si mesmo. É a tirania do outro tóxico impondo-se sobre o si mesmo, é a ditadura do mundo impedindo a liberdade do ser.

A morte-matada ocorre quando o organismo perde a liberdade de escolha ou, no ato de escolher, perde a consciência de si mesmo, vivendo, no ato da escolha, a vontade do outro ou do mundo à revelia da própria vontade. Sem a liberdade de escolha o não-eu impera sobre o si mesmo aniquilando sua capacidade de ser-e-existir-no-mundo-perante-o-outro.

A morte-matada não gera o amor, pois faz fenecer a liberdade de escolha levando o organismo à intoxicação do ser, à alienação ou submissão pelo medo, ou, em casos mais extremos, à identificação com o impositor, o que o fará sair da posição de dominado para a posição de dominador, enrijecendo suas fronteiras para com o outro e o mundo.

Amar é uma escolha que exige consciência plena de si e do outro, exige presença, autenticidade, responsabilidade e maturidade afetiva. Amar não é sentir, é saber afetar e ser afetado. É saber delimitar suas próprias fronteiras e limites, é transcender o ‘Eu’ em função de levar o outro a transcender-se em reciprocidade. É um limite que, bem estabelecido, permite a si e ao outro a abertura consciente das próprias fronteiras em função do surgimento de uma fronteira ainda maior, de um ‘Nós’ transcendente que gera o verdadeiro sentido da vida: o pertencer!

O amor, o verdadeiro amor, o único instrumento capaz de gerar pertencimento exige a morte, exige a escolha consciente de ‘deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja’. Qualquer outra forma de amar, não é amor! É ego, dependência ou culpa! Ego, no sentido egoísta de satisfazer uma necessidade em função de si mesmo, sem a plena consciência da necessidade momentânea do outro.  Dependência no sentido de nos tornamos algozes de si e do outro. Culpa, quando nos tornamos escravos: três formas neuróticas do não-ser.

O amor gerado na escolha consciente de deixar-de-ser-para-que-o-outro-seja exige awareness de si, do outro e do mundo. Exige a consciência que   somos todos os outros que vieram antes de nós, e todos aqueles que ainda estão conosco. A consciência que seremos naqueles que virão depois de nós, e em todos aqueles que estão existindo enquanto existimos. A consciência que somos elos eternos que, no espiral da vida, fundem passado e futuro num só momento: o momento presente, o aqui-e-agora, instante único no qual podemos, ao gerarmos a consciência de si, ser a consciência do mundo. O único momento que realmente nos pertence, no qual podemos exercer o real controle sobre o nosso ser-no-mundo e nossa plena felicidade.



[1] Agonia do Eros. Vozes, 2017, p.27.

[2] YONTEF, Gary M. Processo, diálogo e awareness. Ensaios em Gestalt-terapia. 1998.

[3] RIBEIRO, Jorge P. Vade-mécum de Gestalt-Terapia. Conceitos básicos. São Paulo: Summus, 2006.

[4] Buber, Martim: . Eu e Tu. Tradução: Zuben, Newton A.V. São Paulo: Centauro, 2.001.

[5] Citação de autor desconhecido

 

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