Há uma realidade da qual não conseguimos fugir: nascemos do outro, do encontro de outros e, só nos tornamos outro para o outro, na presença significativa do Outro. Nada somos ou seremos, se na presença do outro não o sentirmos, significarmos e o incorporarmos. O óvulo e o esperma que deram origem ao nosso organismo não eram nossos, nos foram doados pelo encontro de outros. Herdamos, filo e ontogenéticamente características de tantos outros que antes de nós existiram. Nascemos em meio a tantos outros que nos doaram e nos doam a cultura, a religião, os conhecimentos, a lei e a moral, a comunidade e o mundo. Outros que nos deram e a nós se referem pelo nome e sobrenome, substantivos próprios que nos distinguem e identificam perante toda a humanidade.
Se nascemos do outro e pelo outro, tanto em nosso estado físico quanto em nossa subjetividade, em função de que necessitamos tanto buscar uma individualidade que, na maioria das vezes, nos separa desse outro? Se nos constituímos pessoas humanas somente na presença significativa dos Outros, em função de que o rejeitamos em sua alteridade, em sua unicidade, em suas diferenças para conosco? Sob o olhar gestáltico da psicologia da unidade a resposta é única: é devido a não compreendermos que o 'Tu', o Outro significativo da relação deve vir sempre, paradoxalmente, antes do 'Eu' . Em todo e qualquer situação em que o 'Eu' se faça presente na relação antes do 'Tu', o ser existente se fará, neuroticamente, por si mesmo, aniquilando toda e qualquer possibilidade do surgimento do 'Nós' que dá origem ao ser-pessoa.
O paradoxo da vida, como ato de nascer e existir, só pode ser compreendido no confronto consciente com seu oposto, no ato de morrer por escolha. Sem a morte escolhida do 'Eu' o 'Tu' não se fará presente e, sem a presença do 'Tu' perante o 'Eu' o 'Nós' verdadeiro não se constitui, impossibilitando que o 'Eu' exista, verdadeiramente, para o 'Tu' que o constitui como ser-pessoa.
Para que possamos compreender melhor tal paradoxo, precisamos, primeiro, entendermos que o corpo que nos acolhe como indivíduo em nossa personalidade não foi gerado por nós e, nada, absolutamente nada fizemos para que ele pudesse existir. O nosso corpo físico é fruto do encontro de dois outros corpos que, ao se doarem, um para o outro, nos permitiram nascer.
Somos, portanto, fisicamente, 'produto-do-encontro-de-outros' . Bastaria compreendermos profundamente esta verdade para entendermos que, também nossa subjetividade, todo nosso conhecimento, nossas crenças e convicções também nos foram doadas pelo 'encontro-de-outros-com-outros'. Nada do que sabemos ou entendemos saber provém limpidamente de nós mesmos, são doações que recebemos do meio onde vivemos e convivemos.
Pensamos, e temos a impressão nítida que pensamos com nossos próprios conteúdos. Não! Verdadeiramente, não! Pensamos com os conteúdos que nos foram dados pela família, pela sociedade, pela cultura, religião e contato que fizemos com os livros, escolas, mídias e outros, tantos outros que jamais saberemos quem são. Os conteúdos que produzimos, produzimos pautados em tudo o que recebemos e, os assinamos, como se fossem nossos, com um nome ou apelido que também nos foi dado-pelo-Outro. Somos, portanto, nítidos e completamente constituídos pelos-outros-no-encontro-com-Outros .
Pautados nessa posição, então, quem somos? Somos nada! Somente consciência. Pelo menos é o que deveríamos ser: consciência de nós mesmos e de todos os Outros que estão em nós. Somos síntese, integrada e integradora de todos os 'eus' e dos 'tus' que vieram antes de nós e de todos aqueles que, ainda hoje nos doam suas essências. Somos uma totalidade, uma Gestalt feita de infinitos 'eus' e Outros, em constante mutação provocada pelos infindáveis encontros com o outro e com o mundo.
Se somos, em nós mesmos, esta propriedade integrada de todos os outros que recebemos, somos a ela pertencentes, porque, se o Outro nos alimenta, somos, também nós, alimento para o outro. Somos o Outro para o outro em constante troca, alimentação e retroalimentação, alimento e alimentados, Eu, outro e Outro.
Toda totalidade é formada por partes que, por sua vez, são totalidades em si mesmas. O que mantém a unidade de uma totalidade é o sentido de pertencimento existente entre suas partes. Numa totalidade, todas as partes são a ela pertencentes e, a totalidade humana só se faz 'um-todo' quando pertencente a outra totalidade humana, a outro ser-pessoa, consciente de si, do outro e do mundo.
Somos consciência e nada é, para nós, fora de nós, o que está dentro de nós. O mundo subjetivo, para existir, precisa do universo objetivo; porém, o mundo concreto, objetivo, real, que reside fora-de-nós, não é o mesmo mundo que internalizamos, que incorporamos e passou a existir dentro-de-nós. ''A realidade em si, não existe para o ser humano. É algo diferente para cada indivíduo, cada grupo e cada cultura [1] . Ao comermos uma maçã não nos transformamos em maçã, é ela que se transforma em corpo. Da mesma forma, todo alimento psicológico que é assimilado e incorporado por nós, torna-se 'Eu'. Apesar de sermos, também, alimento para os outros, somos antes síntese e consciência em nós mesmos (2) . Pelo menos deveríamos ser.
[1] Perls, apud STEVENS, John O. Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977,p.76.

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